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Castas vs. democracia

COMO O SISTEMA DE CASTAS HINDUS SÃO UM PROBLEMA PARA A DEMOCRACIA INDIANA AINDA HOJE

Por Maria Eduarda Monteiro Mirara

RESUMO:

Este trabalho tem como objetivo principal pesquisar como a influência das castas hindus na sociedade indiana representa um problema para o bom funcionamento da democracia indiana. Seguindo a metodologia de pesquisa descritiva, com fontes secundárias e primárias, cujos resultados são analisados de forma qualitativa, a aplicação da presente pesquisa foi baseada na leitura de matérias que tratavam tanto de questões como a grande religiosidade do país, dando o enfoque na religião do Hinduísmo, mas também, como a sociedade vive sob um regime democrático, e os desafios do mesmo; perpassando por questões como o direito costumeiro indiano, preceitos hindus como os samskaras, o karma, e o Dharma, juntamente com relatos de casos da atuação do sistema de castas na Índia de hoje.

INTRODUÇÃO:

A Índia de hoje se mostra como uma das maiores democracias parlamentares do mundo, com aproximadamente 1.38 bilhões de pessoas vivendo sob seu regime. Dentre essas pessoas, 79,8% se declararam como seguidores da religião do Hinduísmo, a qual é conhecida pelo seu exclusivista sistema de castas.

As castas são um problema que há mais de 70 anos vem tentando ser extinguido pela Constituição indiana de 1950, porém, como este sistema não é pautado em apenas uma visão política, e sim em uma visão religiosa da sociedade e dos seres humanos por ela compostos, ela pode sim representar uma grande ameaça ao bom funcionamento da democracia da Índia até hoje, visto que mais da metade da população do país segue a religião criadora deste sistema, o qual é pautado em princípios antigos e preconceituosos, que vão contra o que se defende na constituição da Índia moderna, fatores que se somam ao fator da grande pobreza que assola o país, e acaba assim por afastar cada vez mais as pessoas da educação, e consequentemente, do conhecimento dos seus direitos.

Neste artigo, visa-se pesquisar a relação das castas hindus e a democracia da Índia atual, analisando, como objetivo principal, a influência desse sistema na sociedade indiana, e se isso realmente representam um problema para o bom funcionamento da democracia indiana; juntamente com a explicação conceitual do que é o sistema de castas, o que a Constituição indiana de 1950 tem redigido sobre o assunto, além da influência prática deste sistema em um segmento específico da sociedade, no caso, na prostituição feminina; ademais da análise de uma entrevista feita por um brasileiro que morou no país entre os anos de 2010 e 2012.

Quanto à metodologia, este artigo é a conclusão final de uma pesquisa descritiva, baseada em fontes primárias, como a Constituição indiana de 1950, bem como secundárias, sendo estas artigos científicos, livros, documentários, reportagens e entrevistas, adiante descritos. Os resultados obtidos são analisados de forma qualitativa, uma vez que a aplicação da presente pesquisa foi baseada na leitura de obras que tratavam tanto de questões como a grande religiosidade da Índia, dando o enfoque na religião do Hinduísmo, bem como o regime democrático do país, e os desafios do mesmo.

Os capítulos subjacentes são compostos por duas abordagens conceituais e duas tecnológicas. O primeiro capítulo dá enfoque no que é o sistema de castas, ao passo que o segundo foca em como este sistema é tratado no texto da Constituição de 1950 do país. Em sequência destes, o terceiro capítulo olha para um segmento mais específico da sociedade e como o sistema de castas atua sobre ele ainda hoje: a prostituição feminina; seguido pelo quarto capítulo no qual ocorre a análise da entrevista de um brasileiro que morou no país entre os anos de 2010 e 2012.

DESENVOLVIMENTO:

Cap. 1. As castas Hindus.

Em vias de se alcançar o completo entendimento do que são as castas na sociedade indiana, devemos analisar três pontos mediadores: o que é o Hinduísmo (assim como algumas de suas crenças bases), como ele influencia na sociedade indiana, e o que o direito hindu diz sobre o assunto.

O Hinduísmo é uma das religiões mais antigas do mundo, porém também é lido por muitos historiadores como um conjunto de distintas crenças de tradição milenar, uma vez que alguns de seus preceitos mudam de local para local, devido ao fato de que não há um texto sagrado único, tampouco um fundador oficial. Em consequência desses fatos, há diversas seitas hindus espalhadas tanto pela Índia, como em diversos lugares do mundo, ramificando muito a abrangência desta religião (como será tratado neste artigo).

Dentre as crenças Hindus compartilhadas por todos os seus adeptos há a ideologia de que a existência é um ciclo de renascimentos, conhecida como samskaras, no qual todo ser humano renasce a cada vez que morre; todavia, se o karma desse ser humano, também conhecido como Lei de Causa e Efeito, mostrar que ele, em sua última vida, tenha conseguido viver exclusivamente praticando o Bem, ele conquista assim a liberdade do samskara. Outro ponto em comum para todos os adeptos é a crença em um Ser Universal, mesmo se tratando de uma religião politeísta, o deus Brahman é a realidade última para os hindus. Nascido da flor de lótus que floresceu no umbigo de Vishnu (outro deus hindu), ele é o Criador que constrói o Universo a cada novo ciclo do mundo.

A grande meta de todo hindu é atingir o moksha, a libertação do ciclo de renascimentos e entrar finalmente em comunhão com Brahman. A única forma de se atingir isso é cumprindo com o seu Dharma, o seu dever moral determinado pela sua posição social, a sua casta.

Uma definição básica do que são as castas é a de que é um sistema de segregação dos hindus, que apresenta como critérios o nascimento, o casamento, a profissão/ocupação social, e o território onde a pessoa venha a habitar. Por levar em consideração primordial o nascimento, é classificado como um sistema hereditário, o qual indica para cada ser humano, que desde o seu nascimento, já há uma determinação natural de qual deve ser a sua posição social; soma-se a isso o fato de que uma vez nascido em um casta, a pessoa nunca pode deixá-la, dentre vários outras regras e limitações impostas por este sistema.

A título de apresentar a origem religiosa do sistema de castas, vale ressaltar dois textos sagrados: os quatro Vedas e As Leis de Manu. Os Vedas, são um conjunto de livros sagrados que apresentam os principais conceitos e símbolos do Hinduísmo5, os quais foram juntados entre os anos de 1500 a 900 a.C.; Em suas páginas, é possível localizar referências de uma divisão básica da sociedade: sacerdotes, guerreiros, lavradores e artesãos; contudo, não há referência alguma a respeito de limitações quanto a troca de uma casta para a outra realizada por um ser humano em uma única encarnação (algo que no sistema vigente não é praticado).

Escritas em sânscrito no ano de 300 d.C, As Leis de Manu contêm os deveres morais e sociais, além de ensinamentos e instruções sobre as condutas que as diferentes classes sociais devem corresponder; instituindo assim o sistema de castas na sociedade hindu. Isto posto, é válido então mostrar algumas destas leis, traduzidas para o português, selecionadas da matéria do professor Luiz Guilherme Marques, referenciada no final, com tradução da professora Ana Clara Victor Paixão, do original inglês de Raimon Pannikar:

As Leis de Manu:

“24. Sabendo o que é moralmente correto e o que não é, o que é justiça pura ou injustiça, ele examinará as causas dos suplicantes, de acordo com a ordem das castas. (…)

Hoje em dia, especialmente na Índia, é possível enxergar na sociedade um atuante e complexo sistema de castas, uma vez que com o passar dos anos e a grande ramificação de crenças do Hinduísmo, foi-se instituindo um sistema composto por diversas castas, incluindo as tidas como mistas e subcastas; acontecimento tal que tornou quase impossível ter-se um controle estatal sobre quantas são as castas existentes na sociedade indiana de hoje. Segundo o artigo do Bacharel em Direito Antonio Augusto Machado de Campos Neto, referenciado ao final:

“Não há Governo que possa ter sobre elas um controle oficial. Calcula-se que há na Índia mais de 4 mil castas, e no seio delas mais de 22 dialetos”.

Tendo em mente a grandiosidade deste sistema, devemos agregar a ele outro dado: os hindus, na última década, representavam 79,8% da população. Sendo a religião com o maior número de seguidores do país, uma vez que o Islamismo vem em segundo lugar com apenas 14,2%, ganha posição de destaque em sua influência histórica, cultural e populacional. Tal influência pode ser vista até na organização das cidades, como aponta a escritora Amita Trasi, ao descrever uma aldeia indiana em seu livro:

“As castas mais baixas ficavam bem longe da praça da aldeia. Eu perceberá suas cabanas um pouco antes nos dois lados da estrada de terra. Cada uma delas decerto era um cômodo com um telhado feito de feno. Era onde os varredores e os coletores de lixo moravam (…). À medida que nos aproximávamos da praça da cidade, as casas iam ficando maiores – barracos de concreto com telhados de folhas de amianto, seus minúsculos quintais abrigando camas de palha,gado, bicicletas. Era aqui que os tecelões, ferreiros, carpinteiros e barbeiros moravam. (…) Quanto mais alta a casta, melhor a casa. Aquelas eram as casas ao longe, agrupadas num canto – casas enormes com telhados vermelhos, algumas com jardins”.

Apesar da Índia se apresentar, nas palavras de muitos autores, como um complexo mosaico humano, um local onde várias crenças, religiões, etnias e culturas coabitam, a influência do Hinduísmo é incontestável; e em consequência disto, o seu sistema de castas também. Os Párias, os Intocáveis ou Dalits, são as castas mais baixas do sistema vigorante. Tidos como impuros, condenados a servir as castas mais altas (como os Brâmane) desde o seu nascimento, representam a oitava parte da população indiana completa. A respeito deles, o Bacharel em Direito Antonio Augusto Machado de Campos Neto, referenciado ao final, escreve:

“A maior parte vivia nos campos, mas sempre ignominiosamente separados dos demais. Se conseguissem o mais desagradável do trabalho, sua remuneração era mínima. Não lhes era permitido nenhuma participação na vida religiosa ou civil. Não era a inferioridade econômica a que mais humilhava o Pária ou Dalit; o que o indignava era o fato de ser considerado impuro ou repulsivo. Um Brâmane não podia olhá-lo tampouco tocar sua sombra; e se o fizesse teria de se purificar com as águas do Ganges, de preferência viajando para a cidade de Varanase.

O Pária não podia se utilizar das águas do poço de uma comuna; devia andar muitas milhas até encontrar aonde se lavar. Seus filhos não podiam ir às escolas, porque nestas estavam os filhos de outras castas. Na sua testa, deviam levar uma marca que assinalasse sua condição de ignomínia.”

Em complemento aos pontos acima analisados, adentramos agora na discussão do que o direito hindu tem a dizer sobre as castas, visto que a influência da religião do Hinduísmo na sociedade indiana já foi constatada, bem como a sua voracidade.

O direito hindu, classificado também como o direito costumeiro indiano teve sua origem oficial após o ano de 1947, com a independência da Índia. Segundo René David, em Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, referenciado no final deste artigo, o direito hindu regulamentou os atos e condutas que eram tidas como pecado segundo o Dharmas de cada casta. Todavia, historicamente, há também outro direito atuante no país: o direito redigido.

Originário da época da colonização Inglesa sob as terras indianas (1858-1947), teve como primeiros documentos oficiais o Code of Civil Procedure, de 1861, o Indian Contract Act, de 1892, e o Indian Registration Act, de 1908. Todos estes documentos, dentre outros, foram sendo implementados ao cotidiano indiano aos poucos, contudo, jamais conseguindo atingir a tamanha abrangência que o direito costumeiro, na sua forma de normas e preceitos religiosos conseguia. Com este empecilho pela frente, o governo da Inglaterra decretou em 1772 que alguns processos, como os relacionados a casamentos, sucessões e as castas, se utilizassem das normas e preceitos hindus, dando abertura para a formatação de livros que reunissem estas legislações religiosas, conhecidos como Tratados de Dharma.

Nota-se então que o direito costumeiro, o direito hindu, mesmo antes de sua origem oficial, já era o direito mais atuante na Índia, mesmo quando outro, o redigido, era aplicado. Relembrando que o Dharma, para o Hinduísmo, é o dever moral de cada indivíduo, é válido pontuar um trecho do artigo O Hinduísmo, O Direito Hindu, O Direito Indiano, posteriormente referenciado:

“o Dharma reconhece, exclusivamente, deveres e não-direitos como, também, consagra a desigualdade social”.

O Dharma de cada indivíduo, para o Hinduísmo, é determinado juntamente com a sua casta, ou seja, os deveres que cada um tem com a comunidade, como consequência da posição social que lhe for determinada ao nascer (sua casta).

Quando olhamos para o panorama geral, podemos concluir que a sociedade indiana de hoje ainda é fortemente regida pelo sistema de castas, o qual foi se tornando cada vez mais vasto e complexo ao longo dos anos. Visto que a maioria de sua população é adepta do Hinduísmo, tornando esta a religião mais influente do país, vide a própria organização de suas cidades. Soma-se agora um último fator: o direito hindu, o direito que a população, por influência e/ou por religiosidade, tem mais costume de seguir, tem como preceito base este mesmo sistema de castas, o qual garante deveres sociais diferentes a cada pessoa a depender da sua casta, assegurando institucionalmente assim a desigualdade no tratamento de pessoa para pessoa.

A questão das castas não é apenas restrita a uma região, ou a um grupo de adeptos desta religião, é uma questão que por muito tempo foi institucionalizada e legalizada, se tornando presente e atuante seja pela organização das cidades, por leis ou por costumes sociais, garantido a esse sistema uma grande influência na sociedade indiana.

Confira o artigo completo aqui.

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